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ARTIGO DO PROJETO

REGISTROS DA PRESENÇA DE UMA ÁRVORE: PROPOSTA PARA UMA INTERVENÇÃO ARTÍSTICA URBANA

Guilherme de Moraes Carriel[1].

RESUMO: Neste artigo pretende-se articular o significado das palavras “registro”, “presença” e “árvore”, em um projeto de poética que se vale de uma abordagem sócio-fenomenológica. Autores como Sandra Rey, Yiftah Peled, Bernardete Panek, são mobilizados por conta do aporte teórico-metodológico que, neste projeto, implica, o processo de realização de um livro de artista, entre outras ações. Assim, esta escolha categorial volta-se à área da fenomenologia por meio do pensamento de Heidegger, Gumbrecht, e também à sociologia, a partir do pensamento dos teóricos da cidade Simmel e Bauman, para se compreender o que se entende e se pretende com uma intervenção artística no âmbito urbano. Por fim, traça-se uma breve contextualização do presente projeto, apresentando motivações e processos envolvidos na proposta de intervenção artística pretendida.

PALAVRAS-CHAVE: Arte contemporânea, fenomenologia, presença, cidade, intervenção urbana.

REGISTRO

              O verbo transitivo “registrar” é definido no Dicionário Informal (2013) como “declarar algo por escrito, mencionar, assinalar, tomar nota de, guardar na memória como lembrança”.

              O ato de registrar algo de alguma maneira - seja ela física, como  um pigmento nas paredes de uma caverna; um lápis e papel; um pincel com tinta e uma tela; um dispositivo eletrônico, captando imagens; ou mesmo por meio do aparato cerebral e suas atividades biofísicas e mentais, captando imagens, ideias, experiências - é exaustivamente utilizado pelos seres humanos, consciente ou inconscientemente, voluntária ou involuntariamente, para os mais diversos fins ou mesmo sem fim algum.

             No campo da arte, o ato de registrar ideias, especulações, vivências, saberes, não se restringe à obra final - seja uma pintura, escultura ou outra, mas está contido também nos croquis, esboços, escritas processuais, devaneios, registrados nos diários, cadernetas, livros, entre outros -, e seu uso, pelos artistas, possui uma origem que só se pode especular, sendo talvez tão antiga quanto o uso de superfícies que se prestam a inscrições.

            Uma das figuras mais notáveis na história da arte, que deixou seu maior legado não só nas poucas pinturas que concluiu durante a vida, mas também nas inúmeras páginas dos seus diários, cadernos de anotações, foi Leonardo da Vinci (CARREIRA, 2000).

             Sob o olhar de Silvana Rey (2002), vivenciamos, no campo da arte contemporânea, uma ausência de parâmetros rigidamente estabelecidos, que é fruto e também agente dos processos de hibridismos técnicos, materiais e mesmo teóricos. Uma obra de arte se configura, muitas vezes, por um complexo de operações que transita entre diversas áreas do conhecimento, podendo ser representada como um iceberg - onde a parte visível, formal e material, possui uma grande parte submersa -, constituída de ideias, conceitos e pensamentos, muitas vezes invisível ao interlocutor.

           Tal ausência de parâmetros rígidos na contemporaneidade permite ao artista um amplo espectro de possibilidades para a pesquisa e investigação, imbricadas no processo de criação ou “processo de formação” (PAREYSON, 1991, p.59 apud REY 2002, p.123).

             Assim, Sandra Rey (2002, p. 123-124) afirma:

E se a obra é, ao mesmo tempo, um processo de formação e um processo no sentido de processamento; de formação de significado, como afirmado acima, é porque, de alguma forma, a obra interpela os meus sentidos, ela é um elemento ativo na elaboração ou no deslocamento de significados já estabelecidos. Ela perturba o conhecimento de mundo  que me era familiar antes dela: ela me processa. Também neste sentido, de fazer um processo a alguém: sim, somos processados pela obra. A obra, em processo de instauração, me faz repensar os meus parâmetros, me faz repensar minhas posições. O artista, às voltas com o processo de instauração da obra, acaba por processar-se a si mesmo, coloca-se em processo de descoberta. Descobre coisas que não sabia antes e que só pode ter acesso através da obra.

 

               Podemos constatar essa dissolução da rigidez entre as fronteiras conceituais, materiais e linguísticas, nos livros de artistas, pois diferentemente da linearidade, narratividade, literalidade, que, em geral, um livro apresenta como possibilidade para escritores, pesquisadores, publicadores, um artista pode se “apossar” do livro com outras perspectivas, intenções, abordagens e intervenções, pensando interferir na materialidade das folhas, na linha, na capa, na ideia de livro, ou mesmo operando um não-livro. Nas palavras de Silveira (2001, p.120):

Essa satisfação nascida da completude e do contato remete ao que mais determinante ou distintivo tem o livro de artista: sua fisicalidade. Como todo livro (aqui entendido como volume), ele também é um corpo físico que ocupa lugar no espaço. É uma coisa, um objeto. Mas se o livro é, o livro de artista é muito mais. É linguagem e metalinguagem tornadas concretas. É um corpo físico expressivo.


 

               Observado por Panek (2005), embora seja a partir dos anos de 1960 que o “livro de artista” passa a ser explorado como uma linguagem artística - quando os artistas buscavam outros locais e meios de exposição dos seus trabalhos, questionando o espaço de arte e as instituições de arte -, seu uso é bem mais antigo, como é o caso de William Blake que ilustrou seus próprios livros de poemas[2].

               A palavra chave que talvez possa caracterizar o livro de artista é “suporte”. É a própria forma em que o trabalho se efetiva na utilização desse objeto (livro), como um suporte de um projeto artístico, que o configura como tal. Nas palavras de Bernardette Panek (op. Cit, p.3): “O livro de artista é lugar, suporte de representação, campo primário que aloja a ideia, o conceito, a representação e não a reprodução da obra original”.

              Acadêmica e metodologicamente falando, o “registro” artístico possui  sua complexidade e desafios, como afirma Lancri (2002). Nas palavras de PELED (2002, p.116): “O texto que acompanha a pesquisa poética deve buscar maior precisão possível no pensamento, sem, no entanto, racionalizar a arte”, cabendo ao artista “situar” sua produção e não simplesmente explicá-la.

            Assim, dentro do campo da arte, pode-se compreender a palavra “registrar” como um processo artístico, seja ele realizado de forma mais subjetiva, ensaísta, como num diário, que pode ou não tornar-se a obra final, que faz parte dela, até a um registro mais formal acadêmico e teórico, visando-se validar ou situar, histórica ou metodologicamente, um procedimento artístico.


 

PRESENÇA

            É possível conceituar-se a palavra “presença”? A acepção que mais interessa aqui é algo como o que aparece na definição do dicionário Pritiberam (2016): “Existência de uma coisa num lugar”. Entretanto, essa escolha necessita de uma melhor explicação do que pode se querer dizer com “existência” e com “lugar”, conceitos amplamente discutidos em várias áreas do saber, como, filosofia, fenomenologia, geografia, entre outras, aqui, certamente negligenciadas.

            Gumbrecht (2010, p. 38), que não quer e não gosta de ser chamado de “heideggeriano”, assume que suas percepções sobre o que significa “presença” possuem grande influência do pensamento de Heidegger, e para esse, o termo abrange a dimensão espacial, no sentido da forma latina prae-essere , ou seja, o que está à frente, ao alcance e tangível aos nossos corpos.

            Entretanto, Gumbrecht percebe que há um problema nesta questão: o que está à frente e pode ser observado ou percebido tem não só essa “qualidade de presença”, de estar ali materialmente, mas pode apresentar “qualidades de sentido”, ou seja, que para além da superfície material de um objeto ou coisa presente, pode-se interpretar sentidos mais profundos, que para ele, são sentidos atribuídos às coisas. (Op. Cit, p.48-49)

            Uma discussão sobre a atribuição de sentido, o conceito de significado, que Gumbretch (op. Cit) remonta aos aristotélicos, que não cabe aqui comentar, conduz ao fato de que ele procura colocar em segundo plano à “metafísica” da interpretação, da apreensão do mundo puramente intelectual e semântico.  Isso se torna um problema do ponto de vista filosófico, que muitos apontariam como “ingenuidade”. Contudo, ele vai em frente, afirmando que é possível “restabelecer o contato com as coisas do mundo fora do paradigma sujeito/objeto” (Op. Cit, p. 81), pois ele percebe, juntamente com Heidegger, que tal “trajetória filosófica milenar (...) da contínua divergência entre a existência humana e o mundo como esfera puramente material – conduziria a cultura ocidental a um estado extremo de alienação do mundo”, o que se configura como uma contrapartida à filosofia cartesiana.

            O mesmo autor traz Heidegger novamente para falar sobre o momento de “revelação” e “retirada” do “Ser”[3] quando há presença diante de algo, então isso se “constitui o acontecimento da verdade”. Este acontecimento de verdade pressupõe um Ser, que para Gumbretch (Op. Cit, p.95) conceitualmente é: “as coisas do mundo independentemente da (ou anteriormente à) sua interpretação e da sua estruturação por meio de uma rede qualquer de conceitos histórica ou culturalmente específicos”, e ainda vai além:

 

(...)o Ser só será Ser fora das redes da semântica e de outras distinções culturais (...). Para que pudéssemos ter a experiência do Ser, porém, este teria de atravessar o limiar entre, de um lado uma esfera livre das grelhas de qualquer cultura específica e, de outro, as esferas bem estruturadas das diferentes culturas. (GUMBRETCH, 2010, p. 96)

              Varella (2007, p.117), ao analisar Gumbrecht e Heidegger, aponta: “para conseguir o efeito de presença devemos suspender as atribuições de sentido. O contato com o mundo (estar no mundo, ser-no-mundo) é fundamental, pois é por meio da materialidade do real que o conhecemos e sentimos”. A autora ainda percebe que o aspecto mais importante da fenomenologia é a ausência de mediação no contato do ente[4] com as coisas do mundo, que pressupõe um contato do ente com as coisas, não só materiais, de forma não conceitual, pois o conceitual impõe um velamento do “Ser”, fazendo uma oposição ao logos ou discurso, entendido aqui como conceitual, intelectual, racional.

                Krishnamurti (1992, p. 85-88), embora nunca tenha aceitado ser chamado de filósofo, e muitas vezes tenha demonstrado aversão àquilo que ele chama de “teorização da vida”, muitas vezes, apresentou um discurso que foi ao encontro a esse mesmo pensamento. Ele afirmou, em uma de suas palestras proferida, na Europa, em 1966, que, embora a vida seja um fenômeno que ocorre no “presente”, nunca alcançamos esse presente, pois vivemos mentalmente, psicologicamente no passado, através das memórias, impressões, influências e tensões.

              Assim como para Heidegger, Krishnamurti (Op. Cit., p.86) percebeu a necessidade de se compreender o que é o “tempo”, para adentrar no entendimento do que poderia ser a “presença”, e afirmou: “existe um presente real quando não há fragmentação do tempo”. A fragmentação do tempo, para ele, é fruto de um movimento psicológico do “vir-a-ser”, onde o passado (memórias, experiências, conhecimentos...), se projeta no futuro e o ente perde a capacidade de apreender as coisas no momento presente, ou seja, ausente das implicações psicológicas que façam a transferência do que ele chama de tempo psicológico.

                Aprofundando seu pensamento, Krishnamurti (Op. Cit., p.88) afirma que só é possível se adentrar na dimensão da presença, quando a mente, não está a “tagarelar interminavelmente, quando ocupada com problemas”. Assim como Heidegger, Krishnamurti percebeu a necessidade de se negligenciar a dimensão conceitual, para que se perceba o mundo, a vida, de maneira direta, não intermediada pelos movimentos do pensamento.

               Na mesma esfera de discussão, pode-se recorrer ao pensamento de Sartre (1987, p. 4) quando afirmou que a existência precede a essência: “Significa que em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define. (...) de início não é nada: só posteriormente será alguma coisa”, embora Sartre não use essas palavras, podemos inferir que aquilo que o homem usa para “se definir”, particularmente e subjetivamente, diz respeito às suas ideias, conceitos, experiências, que se faz posteriormente à sua presença no mundo, ou seja, o estado “existencial” se dá antes do conceito à que exprime total liberdade e responsabilidade do ser no mundo.

               Nenhum dos autores acima citados foram “ingênuos”, e não pretenderam que essa ausência de conceitualismo significaria um não-pensar, um estado de apatia ou mesmo de demência. Para expressar suas ideias, ocorreu um extremo refinamento da qualidade do pensar, da racionalidade, da capacidade de inferir, de analisar, de questionar, um longo trajeto de que aqui, por ora , interessa somente o cerne. Mas vê-se que eles perceberam que tal aparato não é capaz de abarcar a totalidade das questões da vida, e imprimiram uma fissura no pensamento cartesiano pelo qual está erguida e estruturada a grande massa da sociedade e cultura ocidentais.

 

UMA ÁRVORE

             Pode parecer um pouco redundante e prolixo, o uso de um dicionário para se definir o que é uma árvore, algo que é óbvio para a maioria: “Planta lenhosa cujo caule, ou tronco, fixado no solo com raízes, é despido na base e carregado de galhos e folhas na parte superior” (DICIO, 2016). Aos propósitos deste artigo, esta “definição” basta.

         A árvore, de que se fala aqui, é a Ceiba speciosa, cujo nome popular no Brasil é “Paineira”, “Barriguda”, “Samaúma”, “Árvore-de-lã”, da família Malvaceae, que na botânica é parente da Ceiba petandra, “Mafumeira”, á mística árvore dos Maias incidente na Amazônia, ou mesmo da família dos gigantes “Baobás” africanos (SABA, 2007, p.8). A “Paineira” é de grande incidência no Brasil, na Amazônia, Cerrado, Caatinga e Mata Atlântica.

              Na região do Paraná restam bastantes exemplares da “Paineira”, podendo ser vista em diversas cidades, e em meio do pouco que resta da Mata Atlântica e nas plantações no interior do Estado.

              O mais interessante aqui é percebê-las nas cidades, principalmente nas grandes cidades, como Curitiba. Aqui, sua ocorrência é menor que as famosas Araucárias, o que resulta na rede escassa de pontos por onde se encontram. Seus troncos lenhosos e “barrigudos”, pontuados por seus espinhos, mais parecem armaduras frente à hostilidade da civilização; espalham novelos com a delicada fibra de seus frutos, acolchoando o chão de pedra e asfalto.

               Segundo textos de botânica e ecologia (IPE, 2016), a árvore já foi utilizada, na região de Nazaré Paulista - SP, para enchimento de travesseiros com suas fibras, lenha, e, atualmente, sua “importância” e “valor” se resumem a fins paisagísticos, ornamentais, ou de restauração e arborização urbana.

          No final do século XIX, Georg Simmel (1903), já constatava, junto a outros pensadores como Nietzche e Puschkin, que a grande cidade era “danosa” à saúde mental e social de seus habitantes. FREITAG (2006, p. 22) observa que, para Simmel a grande cidade é o lugar do comportamento blasé, ou seja, da indiferença e insensibilidade, se manifestando “entre os citadinos como desinteresse por aquilo que os cerca, distância pessoal”. Tais observações, feitas por Simmel no final do século XIX, ampliaram a extensão do seu pensamento, sendo amplamente discutidas, nos dias de hoje, por autores como Bauman (2009).

              Em um de seus ensaios, “A cidade e a vida espiritual” (1903), Simmel percebeu que as grandes cidades criam condições para a intensificação da “vida nervosa” e da “vida mental” de seus habitantes (SIMMEL, 1903, apud FREITAG, 2006, p. 21). Simmel (2009, p.8) definiu o comportamento blasé: “Ele é, de início, a consequência daqueles estímulos nervosos, que com rapidez se alteram e se condensam nos seus antagonismos, dos quais nos parece provir também a intensificação da intelectualidade na grande cidade”. Assim, pode-se notar que estas percepções do início do séc. XX, onde o mundo nem presenciara ainda o grande êxodo rural, desdobraram-se até o séc. XXI, e tal “intensificação da intelectualidade” já tenha se naturalizado como um padrão de “normalidade”, nem sempre perceptível aos habitantes.

           Um dos mais notáveis teóricos da cidade, Walter Benjamim, desenvolveu seus tipos alegóricos de personagens da cidade, dentre eles, o flâneur, remetendo-o a Baudelaire, e que, por isto, Freitag (2006, p. 32) o define como o “descobridor da cidade moderna”. Sobre o flâneur, D’Angelo se manifesta:

O flâneur não existe sem a multidão, mas não se confunde com ela. Perfeitamente à vontade no espaço público, o flâneur caminha no meio da multidão “como se fosse uma personalidade”, desafiando a divisão do trabalho, negando a operosidade e a eficiência do especialista. Submetido ao ritmo de seu próprio devaneio, ele sobrepõe o ócio ao “lazer” e resiste ao tempo matematizado da indústria. (D’ANGELO, 2006, p. 242)

           

               Poder-se-ia imaginar esse flâneur como um sobrevivente, em meio à catástrofe psicológica que Simmel apontou.

            O autor contemporâneo, recém-falecido, Bauman (2009), afirmou que a vida moderna, ou pós-moderna, que ele prefere chamar de “Modernidade Líquida”, é uma vida permeada pela incerteza, pelo medo e pelo isolamento, e chegou a dizer que “as cidades se transformaram em depósitos de problemas causados pela globalização” (BAUMAN, 2009, p.32). Há um crescente isolamento espacial dos moradores, que, para ele, acentua a intolerância às diferenças, criando um ambiente de “propensão ao perigo”, além do excesso de precauções contra doenças que antes eram pouco mencionadas, como problemas decorrentes do fumo, má alimentação, exposição aos raios solares, depressão, entre outros.

             Pode-se estabelecer um paralelo entre Simmel e Bauman, ao se observar o que este chamou de “grandes fobias”, que aquele já havia profetizado, quando apontou as diretrizes psicológicas e mentais que tomariam conta da vida urbana.

          Bauman (2009) também apresentou uma série de contrapartidas, que acontecem em diversas partes do mundo, a esses “sintomas” da vida contemporânea como, por exemplo, as mudanças arquiteturais na construção de casas e ambientes mais sociais, como foi o exemplo de Estocolmo.

           Ronald Daus (1995) desenvolveu uma extensa pesquisa sobre as Metrópoles Extra-Européias ou MEE, pois verificou que algumas categorias de análises das metrópoles ao redor do mundo, não se enquadravam no enfoque sociológico e econômico da qual derivavam as pesquisas de Simmel, Benjamin, e mesmo de Max Weber. Dessa maneira, ele constatou particularidades em metrópoles como São Paulo - das quais, deste ponto de vista, pode-se projetar, consequências para grandes centros urbanos, como Curitiba -, e passou a analisar imagens recorrendo também a gravuras, fotos, elementos de carnaval, revistas em quadrinhos, entre outros. (FREITAG, 2006, p. 35-40)

            Daus observou que há um “Desembarque” da cidade, onde os moradores, em períodos de férias ou feriados, procuram fugir da rotina do trabalho, da violência e do estresse, geralmente para regiões litorâneas; para áreas “não urbanas”, que ele chamou de “cultura da praia”, que no Mediterrâneo se apresenta como uma grande migração de pessoas, um esvaziamento das metrópoles e uma superlotação do mediterrâneo, em busca de “saúde”, sexo, diversão e distração. (Op. Cit., p. 38)

              Freitag (2006, p. 38), analisando a perspicácia do estudo de Daus, verificou que:

Contudo, ao agir assim, esses europeus recriam, em seus lugares de veraneio, em miniatura, as cidades de onde vêm e os ambientes nos quais vivem. Essa nova vida passa, então, a ser uma réplica da vida cotidiana nos centros urbanos, da qual procuram fugir.

 

            Tal fenômeno é facilmente observado também no Brasil e, mais precisamente, em Curitiba e suas proximidades litorâneas. Percebe-se, assim, que na ânsia dos citadinos em se livrarem dos atordoamentos psicológicos, eles acabam recriando-os, independentemente do lugar onde estejam. Dessa maneira é observável que a “contaminação” do mal-estar psicológico da cidade da qual Simmel falava, tornou-se um padrão normal aos indivíduos contemporâneos, do qual eles mesmos parecem incapazes de se livrar.

 

 

PROPOSTA PARA A INTERVENÇÃO URBANA

              Na abordagem da proposta poética pessoal, assumirei a escrita em primeira pessoa para evidenciar a qualidade subjetiva e a indissociabilidade do sujeito (artista) de seu projeto (“obra”).

           

Que é percepção, o que é ver? Como você vê aquela árvore? Olhe para ela um momento. Com que visão você a vê? É somente uma observação ótica, apenas olhar para a árvore com a reação ótica, observando a forma, o padrão, a luz refletida na folha? Ou você, quando olha para a árvore, nomeia-a, dizendo "Aquele é um carvalho", e passa por ela? Ao nomeá-la, você não vê mais a árvore - a palavra nega a coisa. Você consegue olhar para ela sem a palavra? Assim, você está ciente da maneira com a qual você aborda, você olha para a árvore? Você a observa parcialmente, com apenas um sentido, a visão; ou você a vê, ouve-a, sente-lhe o cheiro, sente-a, vê o seu desenho, capta a coisa toda? Ou, você olha para ela como se fosse diferente dela - é claro, quando você olha para a árvore você não é a árvore. Mas você consegue olhá-la sem a palavra, com todos os seus sentidos respondendo à totalidade da sua beleza? (KRISHNAMURTI, 1983, p. 34)

           

             Intrigado por essas questões da percepção, da observação, da presença, do que é a vida urbana e cotidiana, e mais precisamente, qual é o papel social, político e humano de uma pessoa formada em artes visuais, comecei a desenvolver um projeto artístico que coloque em relevo as categorias já mencionadas neste artigo.

            Após um exercício inicial da disciplina de Projeto Avançado “Espaço, tempo e forma. Estéticas Urbanas: Propostas para um novo humanismo”, do curso de artes visuais da UFPR, que consistia em ficar por, no mínimo, duas horas sentado em um local público anotando todas as percepções decorrentes, à la Georges Perec (1974), em “Tentativa de esgotamento de um local Parisiense”, dei início a um diário, também inspirado (mas, na época, não tão consciente disso) no Diário de Krishnamurti (1982), onde a escrita se tornou uma forma de catarse reflexiva de questões que me eram sensíveis, ao longo do meu dia.

             O progresso do diário de artista seguiu, com frequência irregular, mas percebi que havia uma recorrência no número de relatos de percepções, sendo que a sensação de “presença” era um tema dominante. Passei a olhar melhor para essa questão, e, em um determinado dia, nada especial, ao contrário, bem banal, tal sensação de “presença” aconteceu diante de uma Paineira, da qual desconhecia o nome na época, localizada na Praça do Batel, em Curitiba:

Caminhando depressa, num súbito viu aquela árvore, uma Paineira que em outros lugares e cidades já chamara a atenção. Mas ali, naquele instante havia algo diferente. A forma daquele tronco, garrafado e com sua sinuosa bifurcação, convidava a adentrar à um outro estado de percepção. Mas não era uma escolha, naquele instante já estava ali. As moças e rapazes sentados na mesa da banca pareciam insensíveis àquele momento, e movimento dos passantes se mesclava ao movimento mecânico dos motores dos carros ali na rua. A Paineira nos fazia um convite para adentrar em outra ordem, intocada pelo caos daqueles que passavam ao seu redor. (CARRIEL, 2016)

 

             A partir daquele dia, passei a sentar-me ali naquela praça com mais frequência, com o intuito de observar e conhecer melhor aquelas sensações, o ambiente, e tudo o mais. Já havia ali um interesse em tornar público, de alguma forma, aquele diário, mas ainda não sabia como fazê-lo.

             Antes, o diário que trazia escritas de uma figura quase-flâneur, que relatava coisas observadas durante caminhadas, sem nenhum propósito definido, sedentarizou-se, por um momento, naquela praça, diante daquela árvore.

            É interessante apontar que minha escrita é feita na terceira pessoa e no passado, pois compreendo que, enquanto escrevo no diário, remetendo-me aos fatos passados ou mesmo sobre os fatos que acontecem no momento da escrita, tudo que é registrado diz respeito a coisas que já foram, na “linha” do espaço-tempo, que já não estão presentes, por mais imediato que possa ser o registro, o que acaba criando uma tensão entre o que foi um momento de presença e o registro que se lê no passado. Com este modus operandi, intento deixar evidente que o momento de presença acontece no aqui e agora (hic et nunc, em latim), e que, para o leitor, isso dar-se-á no momento em que ele estiver lendo e, certamente, não coincidirá com o tempo-espaço do que está escrito.

           A escrita em terceira pessoa, no diário, refere-se ao questionamento filosófico/psicológico, no qual entendo que o sujeito, no caso eu como escritor, já não é mais aquele quem escreveu o texto, devido ao distanciamento no espaço-tempo daquele fato ocorrido e das experiências que formaram o sujeito, sendo também um “eu” que teria ficado no “passado”, registrado assim como um alguém que experienciou aquele momento.

          Vale lembrar, aqui, o conceito de “radicante” de Bourriaud (2011, p. 20): “uma arte radicante – epíteto que designa um organismo capaz de fazer brotar suas próprias raízes e de agregá-las à medida em que vai avançando” [...] “Ser radicante, pôr em cena, pôr em andamento, as próprias raízes, em contextos e formatos heterogêneos; negar-lhes a virtude de definir por completo nossa identidade”. 

          Hannah Arendt (1972, p.266-267, apud Bourriaud, 2011, p. 83), diz que a cultura é ameaçada, quando: “todos os objetos e coisas do mundo, produzidos pelo presente ou pelo passado, são tratados como meras funções do processo vital de uma sociedade, como se só existissem para satisfazerem a alguma necessidade”, e que a arte deve resistir ao processo de consumo.

        Tal leitura me fez compreender que aquele processo que estava fazendo poderia ser entendido como algo inscrito no campo da arte contemporânea, e também me fez debruçar sobre a maneira de “como proporcionar a experiência de presença” a outra pessoa. Para tal, o livro “Produção de Presença”, de Gumbrecht (2010), já mencionado, agregou boas informações e conceitos para a elaboração de ações que tivessem como finalidade a produção de presença naquele que resolver interagir com a intervenção artística, ora proposta.

           Da mesma maneira aqui, não pretendo produzir objetos ou coisas para serem consumidas e interpretadas. O propósito que pretendo alcançar, ou melhor, idealizo, é provocar, no outro, um novo olhar; um olhar que não queira, de imediato, interpretar, racionalizar, mas que possa permitir a condução daquele que interage à esfera não “ordinária” de “presença”.

          Visando responder a questão de “como produzir presença através de uma ação artística” e inspirado por trabalhos como os realizados pelo Grupo PORO, por exemplo, “Folhas de Ouro” (2002), realizado em Belo Horizonte e São Carlos - SP - que consistia em se pintar de dourado folhas de árvores, e, após isto, reinseri-las na árvore, na busca pelo aprofundamento da vida cotidiana, por meio de instantes poéticos de percepção e ampliando a conexão com a experiência do “aqui e agora” (PORO, 2013) -, resolvi relacionar a proposta aos estudos em cerâmica que venho desenvolvendo, a fim de que os objetos pudessem fazer o papel de aguçadores da percepção e de “produtores de presença”.

            Assim, confeccionei peças de cerâmica, com argila tabaco, queimadas em alta temperatura, mimetizando a forma das painas, frutos da Paineira, em sua forma, textura e tamanhos, procurando deixar explícito, nos objetos, seu caráter referencial.

           No interior oco das painas de cerâmica inseri, por um pequeno orifício na parte inferior do objeto, trechos do diário redigidos em papel, que fazem referência direta ao local em que estão, à árvore e à questão da presença. Dei o nome de “Presentes” a esses objetos, que foram abandonados nos bancos nos quais sentei durante o período de escrita, a fim de que alguém os leve embora.

           Os “Presentes” contêm, em seu interior, a essência do trabalho, que só será concretizado quando quebrados, acidental ou propositadamente, por aqueles que os levarem, revelando, assim, o texto do diário, o que poderá acontecer ali no momento em que a pessoa encontrar um dos objetos ou dali a anos.

             Outra ação que integra a proposta poética aqui exposta, a confecção e fixação dos acúleos (espinhos) da Paineira, em escala natural, de cerâmica, será realizada nas árvores da Praça do Batel, sem que causem dano às mesmas. A intenção é que os acúleos de cerâmica fiquem camuflados na Paineira e também nas outras árvores que não possuem espinhos, para que, no olhar lançado ao contexto, alguém vivencie um instante de percepção/presença.

              Em resumo, a proposta “Registros da presença de uma árvore” se configura na articulação de vários elementos: diário/livro de artista; literatura; objetos escultóricos de cerâmica (“Presentes” e “Acúleos”); site-specific; intervenção e ação urbanas. Entretanto, àquilo a que o trabalho almeja é a produção “imaterial” e subjetiva do estado de “presença”.

[1] Graduando em Bacharelado em Artes Visuais pela Universidade Federal do Paraná.

[2] No século XVII, o poeta e artista William Blake produziu seus livros de poemas e os ilustrou, se tornando um marco do encontro entre a arte e a literatura, onde o registro textual e imagético faziam parte de um conjunto para construir a “arquitetura” do livro, sendo eles: Songs of innocence, (1789); Songs of Experience (1794); Night Thougths (1797). (FABRIS, 2009)

[3] Em seu livro “Ser e Tempo” (1928), Heidegger aponta as questões fenomenológicas do “ser”, percebendo que o homem é um “ser que caminha para a morte” e tem a possibilidade de indagar sobre essa questão, o que lhe causa preocupação, angústia e culpa, e ele deveria “saltar” dessa condição cotidiana para encontrar seu verdadeiro “eu” ou “ser”, cunhando assim o conceito de daisen ou “ser-no-mundo” ou “ser-aí”.  Abrem-se, assim, novos horizontes para a questão filosófica do “ser” e do “ente”, onde o primeiro normalmente era compreendido como algo fora da dimensão do tempo, atemporal, já o segundo entendido como o ente humano nas suas relações culturais, históricas, sociais e econômicas. No conceito de Daisen, Heidegger insere a dimensão temporal para o “ser” e afirma que só assim ele pode se expressar no mundo. (ARAÚJO, 2013)

[4] “O que é, em qualquer dos significados existenciais de ser. Habitualmente essa palavra é usada em sentido mais geral. Diz Heidegger: Chamamos de Ente muitas coisas, em sentidos diferentes. Ente é tudo aquilo de que falamos, aquilo a que, de um modo ou de outro, nos referimos; Ente é também o que e como nós mesmos somos.” (SÓFILOSOFIA, 2016)

REFERÊNCIAS

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